Por Dentro do Box: Conhecendo os bastidores da Fórmula E
Visitação ao box da Nissan, caminhadas no pitlane, conversas com membros de equipe e a Fórmula E em uma nova perspectiva
Texto por: Sonia Cury
Era por volta das 11 da manhã de sexta-feira, 24 de março, quando uma pulseira verde foi colocada em volta do meu pulso e um adesivo amarelo se fez presente no cordão da minha credencial. Aquilo era um indicativo de que eu - juntamente com outras pessoas também condecoradas com fitas coloridas em suas credenciais - teria a oportunidade de conhecer o box da Nissan por dentro e entender todo o trabalho da equipe.
Me animei com a possibilidade e me encaminhei para um sofá na lateral da grande sala VIP da Nissan, onde aguardava por Sacha Fenestraz e Norman Nato, que participariam de uma coletiva em frente a todos os jornalistas e convidados da empresa japonesa.
Após a coletiva, tomei uma água e fiz toda a longa caminhada de retorno ao paddock a pé, sabendo que em três horas teria que voltar para ir com o guia até o box da Nissan - mas pelo menos nesse caso seríamos levados ao nosso destino em um carrinho elétrico.
De volta ao paddock, depois de ter almoçado na sala de imprensa, fui recebida com o barulho de ferramentas e música, que se misturavam enquanto os engenheiros e mecânicos se revezavam entre quem iria sair para almoçar e quem continuaria trabalhando no carro. Tudo precisava ficar ajustado para o Shakedown que começaria às duas e meia da tarde.
Na parte de trás dos boxes, cada equipe tinha o seu ritmo. A McLaren para poupar tempo tinha uma pequena tenda de alimentação dentro do próprio box, onde iam em grupos comer. A Jaguar também usou do mesmo recurso, enquanto que a Andretti tinha optado por comer fora do paddock e a calmaria atípica indicava que o box da equipe norte-americana estava quase vazio.
Quando terminavam de comer, as pequenas tendas em um passe de mágica deixavam de existir, isso porque bastava sair e voltar minutos depois para não encontrar nenhum resquício delas.
Em frente a parte de trás dos boxes, haviam mesas de madeira com guarda-sol, no chão um tapete de grama sintética, alguns vasos com plantas que decoravam a área e mais ao fundo tinha um banheiro de uso exclusivo das equipes. Ao passar nessas mesas ao longo do dia, era possível encontrar muitas vezes os chefes de equipe conversando com membros da FIA, engenheiros jogando conversa fora, pilotos mexendo no celular ou simplesmente relaxando por um breve instante.
Os idiomas também se cruzavam por ali. Apesar do inglês ser predominante, era comum ouvir membros da Porsche falando em alemão, integrantes de equipes diferentes andando lado a lado e conversando entre si em francês, em espanhol, em chinês. Uma mescla interessante e que tornava o ambiente ainda mais único.
No meio dessas andanças, fui surpreendida com o convite de alguém para visitar o box de sua equipe. O convite não veio do nada, ela já me conhecia de outros carnavais. A Fórmula E no Sambódromo do Anhembi não seria o nosso ponto de partida, mas sim o nosso ponto de encontro, por ser a primeira vez que a gente se viu pessoalmente.
Ao entrar no box, os membros da equipe trabalhavam arduamente cada um em seus postos. Demorei um instante para me dar conta de que aquela movimentação era para o Shakedown. O tempo passa tão rápido na pista, que as coisas se entrelaçam sem que a gente se dê conta.
Para não atrapalhá-los, ficamos no fundo observando como tudo funcionava. Ela me contou sobre o que cada um fazia e se encheu de orgulho ao falar sobre a colega que ocupava uma das posições chave dentro da equipe como especialista de pneus. Mais tarde naquele mesmo dia, descobri com felicidade que a maioria das equipes da Fórmula E possuem mulheres em pelo menos um cargo chave na parte de engenharia e performance.
Conversamos sobre a equipe e seus olhos se encheram de lágrimas ao ouvir o meu relato sobre o quanto eu admirava o time e a categoria em um geral, pedi para que ela não chorasse, porque eu facilmente choraria junto. Porém, mal sabia eu que 5 minutos depois teriam lágrimas saindo dos meus olhos ao ver os pilotos entrando nos carros e deixando o box.
Foi bonito presenciar aquele instante que eu só tinha visto pela TV, onde o piloto está dentro do carro com a viseira abaixada, apenas aguardando o momento de invadir a pista. A verdade é que muita coisa acontece naquele breve instante.
O engenheiro de performance troca algumas breves palavras com o seu piloto, os mecânicos se posicionam igualmente ao lado dos carros, placas de alerta e luzes indicam quando está seguro para tocar no carro e quando precisam se afastar. Um sinaliza uma coisa para o outro em uma linguagem corporal que diz muita coisa, mas para mim apenas serviu para deixar claro que sairia primeiro o carro da esquerda e depois o carro da direita.
Os mecânicos se afastaram, as luzes de led do primeiro carro se acenderam e o piloto foi para pista sendo copiado segundos depois pelo seu companheiro de equipe.
Apesar das brincadeiras de que o carro da Fórmula E não tem som, na verdade ele tem um som muito específico, que ao vivo se difere muito do que ouvimos nas transmissões da TV. Parece um jato, uma turbina de um avião moderno que passa por nós de forma rápida e que mesmo não se assemelhando em nada com o seu colega a combustão, consegue nos arrepiar do mesmo jeito.
Pitlane da Fórmula E no E-Prix de São Paulo (Foto: Sonia Cury/Entre Fórmulas)
Sem carros no box, soltei a respiração que nem sabia que estava prendendo e uma sensação de vazio surgiu por um breve momento devido a ausência dos carros, mas logo isso começou a sumir devido a agitação dos mecânicos, que passaram a organizar as ferramentas enquanto aguardavam novas instruções.
Os engenheiros grudaram os olhos em seus computadores e eu passei a acompanhar as telas que traziam informações que eu não podia compreender.
Estar na posição de espectador, me fez refletir sobre como tudo funciona de maneira ordenada e todo mundo sabe exatamente o que fazer, além disso, existe um certo silêncio que não condiz com o ritmo acelerado em que todos trabalham.
E foi em silêncio, que ao término do Shakedown, deixei o box da equipe com as mãos trêmulas. Meu corpo manifestando as emoções contidas durante aqueles minutos extasiantes.
Caminhei pelo sol até a área VIP da Nissan, precisava estar lá se quisesse visitar o box da equipe japonesa. Aguardei alguns minutos para a liberação do meu grupo e de carrinho elétrico fui levada de volta ao paddock.
Já na frente do box da Nissan, Dorian Boisdron, diretor da equipe, passou as orientações gerais, pedindo que prestássemos atenção ao andar por lá para não esbarrar em nada e nem atrapalhar o fluxo do time que trabalhava no carro para o Treino Livre 1.
Durante a visitação, não podíamos filmar nada, já que na traseira do carro continha alguns dos segredos da equipe e como eles estavam abrindo tudo para fazer os ajustes necessários não podiam correr o risco de ter algo vazado.
Outro membro da equipe que infelizmente não me lembrei de perguntar o seu nome, começou a explicar sobre como a Fórmula E funcionava de um modo geral, contando que ali não existia motorhome, nem cozinhas separadas para cada equipe como no caso da Fórmula 1, todos compartilhavam os mesmos espaços em comum e isso, de certa forma, contribuía para que tivessem um senso de família.
Ele contou como um de seus momentos favoritos era terminar o trabalho do dia e se juntar aos mecânicos da Andretti e da Penske para tomar uma cerveja e que tudo quase sempre era nesse clima.
Apesar de eu já saber dessas informações, foi bem bacana presenciar a reação dos outros convidados, que pareciam surpresos a cada nova revelação.
Ele também contou como os carros da Fórmula E nunca voltam para a fábrica depois que a temporada começa. O veículo deixa a fábrica na pré-temporada, onde depois disso já é levado para a primeira corrida do ano e assim segue corrida após corrida. Na fábrica só trabalham com os dados obtidos, manutenção de peças e reposição. Ajustes diretos são feitos ao longo da temporada no país em que o carro estiver e ele só volta para a base da equipe no final da temporada.
É mais uma forma da categoria cortar custos e também emitir menos poluentes com viagens de avião em excesso.
Depois disso, nós fomos levados até a área VIP do box, onde havia uma bancada com diversas telas em que era possível acompanhar a transmissão da corrida, ver mapas, indicações de tempo e informações adicionais sobre a performance dos carros da equipe.
Parados ali, o engenheiro nos indicou que de um lado ficava a sala do Nato e do outro a sala do Fenestraz. Todos os boxes possuem a salinha do piloto, onde eles se trocam e se isolam para ter um momento de concentração antes de entrar na pista.
Um pouco mais para trás, ficava a área dos engenheiros, que notei que na Nissan é mais isolada do que no outro box que eu havia visitado.
Foi curioso ver como tudo é cronometrado. Em um dos telões, dava pra ver uma contagem regressiva onde em cima era indicado que faltavam 8 minutos para entregar todos os documentos sobre as condições do carro na área técnica da FIA, outro aviso piscante mostrava que faltavam 42 minutos para o início do Treino Livre 1 e em uma cor diferente ficava por último a indicação de que faltavam 1 hora e 53 minutos para o jantar.
No chão em frente a bancada, vimos uma pilha de pneus da Hankook que estavam sendo cuidadosamente limpos pelos engenheiros. Sacha e Norman, com seus macacões pendurados na cintura, passaram por nós para testar os fones e microfones de comunicação com a equipe, antes de retornarem cada um para a sua sala.
O engenheiro explicou sobre os pneus da categoria e como eles eram usados ao longo de toda a corrida. Eu lhe perguntei sobre as preferências de usar pneus novos ou usados por parte dos pilotos e ele disse que normalmente eles preferem usar os novos na classificação, já que por fazerem voltas rápidas ele está inteiro, e os usados na corrida, por uma questão de que eles não vão tão rápido na corrida quanto na classificação e com a boa durabilidade dos pneus da Hankook, os usados demoram muitas etapas para ficarem inutilizáveis para um padrão de corrida.
O engenheiro também nos explicou sobre as configurações dos boxes. Ao passar por eles é nítido ver que cada um tem um design diferente apesar de todos terem as mesmas coisas. Ele revelou que mesmo com as diferenças, todos os boxes tem o mesmo tamanho e a mesma quantidade de peças e componentes, o que facilita na montagem, desmontagem e transporte. Além disso, a montagem da parte interna é sempre igual em qualquer lugar do mundo. A única coisa que muda é a posição dos boxes, já que em cada etapa as equipes ficam em lugares diferentes no pitlane.
O E-Prix de São Paulo, assim como o E-Prix de Puebla que aconteceu em 2021, gerou a configuração atípica de se ter um box na frente do outro, quando normalmente eles ficam todos lado a lado.
Com um volante na mão, o engenheiro nos contou que aquele era um protótipo do volante usado pelos pilotos. Ele não podia mostrar o original já que os botões indicavam alguns dos segredos da equipe e é por isso que nas transmissões, quando temos a visão da câmera do capacete do piloto, é comum que o volante apareça sempre desfocado, porque cada equipe programa alguns dos botões à sua maneira e isso não pode ser revelado em hipótese nenhuma.
Apesar disso, ele explicou o básico que todo volante tem que ter como o ponto neutro, o botão de comunicação, o botão de água e mostrou o acelerador na parte de trás do volante.
Com as explicações feitas, o engenheiro deixou o volante na minha mão e ainda brincou comigo ao me dar a dica de não derrubar o volante no chão, já que só a carcaça do mesmo custava mais de 7 mil euros.
Meu sangue gelou, rimos muito e eu com todo o cuidado do mundo passei a observar o objeto em minhas mãos. Me surpreendi com o quão pesado é o volante da Fórmula E, inclusive, todos os pilotos já haviam comentado no começo da temporada sobre como esse volante do Gen3 é bem mais pesado que o do Gen2, sendo que alguns deles nas primeiras etapas chegaram a ficar com bolhas e inchaços nas mãos no pós corrida, devido a força aplicada para virar o volante e manter o carro estável em meio ao frenesi das disputas na pista.
Eu com o volante da Nissan (Foto: Sonia Cury/Arquivo Pessoal)
Tirei uma foto segurando o volante e após isso fiquei conversando com um outro engenheiro sobre as preparações para a corrida. O assunto foi fluindo de uma forma tão natural, que quando dei por mim estava eu, ele e mais outro membro da equipe falando sobre alguns e-prix de anos anteriores. Foi interessante compartilhar algumas memórias de corridas, já que eu vinha com a perspectiva de quem viu de casa e eles traziam a visão de quem estava vivenciando aquilo de dentro, o que nos arrancou alguns risos devido as percepções diferentes de um mesmo momento.
Quando o último convidado terminou de tirar a sua foto com o volante, era a hora de deixar o box da Nissan para a equipe poder se concentrar no Treino Livre 1.
A fita preta que era colocada para delimitar espaço foi passada. Os outros convidados deixaram o paddock para ir em direção a área VIP exclusiva da Nissan no final da reta e eu me permiti ficar um pouco mais por ali já que estava com a credencial de imprensa.
Caminhei mais um pouco pelo pitlane, apenas observando os times fazendo seus ajustes finais. O sol já tinha dado uma trégua e as luzes dos boxes ficaram mais intensas com o fim de tarde que se aproximava aos poucos.
Barulhos de ferramentas, alguns risos, palavras proferidas em idiomas que eu não sei falar, câmeras da Fórmula E registrando o momento, os repórteres oficiais da categoria estavam ao vivo falando sobre as expectativas para aquele final de semana. Tudo funcionando em volta de mim e eu ainda tentando absorver a sensação de estar presente vendo tudo ao meu redor acontecer.
Não tem como colocar em palavras como é ver o por trás das câmeras e a razão não é por ser diferente do que eu imaginava, mas sim, por ser exatamente o que estou acostumada a assistir em cada transmissão ao vivo e vídeos compartilhados.
O ambiente é leve, as pessoas não importando o seu cargo tratam os outros de igual para igual, a forma de se comunicar é mais informal e ninguém perde a chance de brincar um com o outro, seja jornalista com piloto, piloto com assessor, assessor com engenheiro.
Claro que existem desavenças, atritos, problemas como em qualquer outro ambiente de trabalho, mas não tem um ar de tensão ou uma pressão que faz com que a gente caminhe por lá com a sensação de a qualquer instante alguém vai nos dizer que não se pode fazer isso ou aquilo.
De fato existe um senso muito grande de comunidade, de família, de pertencimento.
Só sei que depois daquela breve observação, deixei a área do pitlane, porque dentro de alguns minutos os carros iriam para a pista e por essa razão o pitlane se fecha, sendo liberado apenas para as equipes e pessoas autorizadas por uma questão de segurança e também para que tenham tranquilidade para trabalhar.
Fui para a sala de imprensa com os olhos cheios de lágrimas e as mãos trêmulas. Mais uma vez, o meu corpo manifestando a adrenalina após todos aqueles acontecimentos.
E ainda havia tanto a acontecer naquele final de semana.
Dos membros da Penske cantando parabéns para o Stoffel com chapéu de abacaxi na cabeça até eles celebrando a pole com o belga, enquanto ele jogava o troféu para cima em meio a aplausos. Alguns dos pilotos reunidos nas mesinhas externas jogando alguma coisa que eu não pude identificar, porém, estavam barulhentos o bastante para eu saber que o negócio estava intenso. Dos engenheiros da NIO ouvindo e cantando “I Want It That Way” dos Backstreet Boys até os da Porsche sendo embalados pelo bom samba brasileiro enquanto organizavam as coisas por lá.
O chefe de equipe da Andretti, Roger Griffiths, parado na parte de trás do box e falando no celular com o chefe de equipe da McLaren, Ian James, que estava na parte de trás do box da McLaren acenando para ele e rindo enquanto prosseguiam com a conversa, sendo que estavam separados apenas pelo box da Jaguar que ficava entre as duas equipes.
A festa da Jaguar pelo paddock após a vitória de Mitch Evans com Sam Bird em P3, sendo que o pessoal da Envision também se juntou as celebrações por conta do P2 de Nick Cassidy. Alguns foram juntos se empilhando em cima dos carrinhos elétricos de quatro lugares, enquanto outros apenas resolveram sair andando pela pista, junto com o público que também se encaminhava em direção ao pódio, que por ser próximo dos fãs, permitiu que Mitch Evans jogasse champanhe em quem estava por ali.
As gritarias, as cantorias, as comemorações, Sam Bird grudado com o seu troféu em qualquer lugar que fosse, James Barclay, chefe da Jaguar, abrindo um sorriso raro de se ver. Os membros da McLaren, que observavam toda a festa contagiante da Envision e da Jaguar pelo paddock, enquanto comiam o grande estoque de sorvete que tinham em seu box.
Após toda a bagunça, lá estavam eles com seus uniformes diferentes, todos mesclados em laranja, vermelho, preto, azul, branco e outras cores, caminhando lado a lado. Quem ganhou e quem perdeu discutindo sobre o que comer no jantar, quem iria celebrar em tal restaurante, quem ficaria no hotel, quem tinha planos para o dia seguinte para poderem fazer algo juntos, quem voltaria para o país de origem e que horário seria o voo para poderem fazer companhia um para o outro, quem ficaria mais alguns dias no Brasil.
Conversas em inglês, em francês, em alemão, em espanhol, em chinês...
Tudo fluindo com a mesma energia de quando eu pisei ali dias antes, o mesmo senso de comunidade apesar das rivalidades e das disputas.
São Paulo foi apenas a sexta etapa de um campeonato que vai até julho e independente de quem será o campeão em Londres, fica claro que mesmo com os altos e baixos, a Fórmula E é um ambiente muito mais receptivo e que se difere muito dos outros campeonatos que também são regidos pela FIA.
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