OPINIÃO: Um panorama do que está acontecendo com a Porsche
Em um momento de domínio do trem de força da Jaguar, a Porsche se vê em uma situação delicada na Fórmula E, mas ainda tem tempo de responder à altura
No começo da temporada, toda a atenção estava em cima da Porsche e não era para menos. A equipe alemã estava dominando e ocupando os primeiros lugares do pódio com o seu trem de força surpreendente. Mesmo com a empolgação, os mais acostumados com a categoria elétrica mantinham um tom cuidadoso, afinal, a Fórmula E é conhecida por ser um campeonato bem disputado e em algum momento alguém bateria de frente com a Porsche.
Esse momento começou a se desenrolar a partir da etapa da Índia, quando Jean-Éric Vergne conquistou a primeira vitória da DS Penske na temporada, assim como Nick Cassidy subiu ao pódio pela primeira vez no ano ao ficar em segundo lugar. Naquela altura, o neozelandês da Envision vinha apresentando performances consistentes e conseguindo pontos importantes, entretanto, passava despercebido aos olhos do grande público.
Depois disso, vimos a Jaguar crescer com os seus dois pilotos e Nick Cassidy se tornou uma presença constante no pódio até chegarmos na etapa de Mônaco, onde ele passou Pascal Wehrlein na classificação de pilotos e assumiu a liderança do campeonato, assim como a Envision também chegou ao topo da disputa entre equipes.
E de repente, tudo parece perdido para a Porsche.
Pascal Wehrlein nunca mais se destacou, António Félix da Costa não entrega mais nada. Feche a fábrica. Acabou. O sonho acabou.
Mas não é bem assim.
Os pontos seguem vindo, o problema é que os principais rivais da Porsche não estão somente pontuando, eles estão chegando no pódio, tendo bons desempenhos na classificação e conseguindo escalar o pelotão de maneira efetiva, ou seja, quando chegam lá na frente, eles se garantem até o final.
A Porsche necessita de uma atualização mais assertiva em seu carro, os pilotos precisam melhorar o seu desempenho na classificação e as estratégias da equipe tem que ir além de se basear nas atitudes que são tomadas pelo adversário que está na frente durante a corrida.
O time precisa recobrar aquela mesma força que foi aplicada durante o desenvolvimento do Gen3, quando olharam para o legado deixado no Gen2 e decidiram que as coisas seriam diferentes na nova geração e, de fato, estão sendo. Contudo, um campeonato com tantas variantes requer uma reação mais imediata.
De volta ao passado e de encontro ao presente
Quando a Porsche entrou na Fórmula E durante a sexta temporada as expectativas foram lá em cima. É uma marca forte mundialmente e que tem o costume de entrar nas competições para brigar pelo topo. Porém, a realidade foi muito mais dura do que o time alemão esperava.
Além de estarem pisando em um território novo e com equipes que já estavam estabelecidas dentro da Fórmula E desde o início, ter que alinhar todo um time praticamente do zero não foi fácil.
Depois de somar dois oitavos lugares e um sétimo lugar no campeonato por equipes, além de muitas situações complicadas - apesar de algumas pequenas alegrias no meio do caminho -, a Porsche colocou o seu coração no Gen3 e na construção de um trem de força potente, resistente e que pudesse surpreender a concorrência no segundo em que a primeira corrida oficial da nova era fosse iniciada.
O discurso do time nos materiais promocionais pré-temporada era de uma Porsche que não entrava para perder, que tinha orgulho do que a sua marca representa e que iria elevar os padrões dentro de pista na Fórmula E, provando que não estavam ali para ser só mais uma equipe, mas sim, a equipe que seria o modelo a ser seguido pelo resto do grid quando o assunto fosse powertrain.
E eles não decepcionaram enquanto a isso. O Porsche 99X Electric provou em diversos momentos que é sim um dos trens de força mais eficientes desse começo de nova geração.
Por mais que a Jaguar esteja no foco atualmente, a Porsche ainda segue firme na briga e isso se prova não somente pelo fato de que mesmo com as dificuldades, Da Costa e Wehrlein estão pontuando, mas também devido aos pódios conquistados por Jake Dennis em Berlim e Mônaco. Afinal, é importante ter em mente que a Andretti utiliza o trem de força da Porsche.
Talvez, os resultados da Andretti indiquem que há uma luz no fim do túnel e sabendo que as equipes trabalham constantemente em melhorias - mesmo que dentro das limitações impostas a elas pela FIA - tudo é possível.
Porém, isso leva para um próximo ponto: os pilotos e as estratégias.
Adaptação e circunstâncias
António Félix da Costa dispensa apresentações, o campeão da sexta temporada da Fórmula E, conhece esse campeonato muito bem e sabe como lidar com a pressão e os altos e baixos que uma temporada proporciona, porém, assim como uma parte considerável do grid, o português encontrou dificuldades para se adaptar ao Gen3.
Enquanto pilotos como Dan Ticktum, Nick Cassidy, Mitch Evans e Jake Dennis se encaixaram rapidamente com o carro, outros pilotos apresentaram mais dificuldades em lidar não somente com a nova velocidade, mas com o peso do volante, os pneus mais duros da Hankook e como equilibrar tudo isso de forma que se mantenham competitivos e longe de confusão ao longo de uma corrida inteira.
Da Costa falou diversas vezes sobre as dificuldades que vem enfrentando para se adaptar ao Gen3 e dos erros bobos cometidos por ele em algumas etapas. Como no E-Prix de São Paulo onde ao tentar fazer uma das curvas, o volante escapou de suas mãos e ele passou reto, ou quando errou na ativação do Modo Ataque em Berlim, ou quando perdeu o tempo de virada em alguns pontos do traçado de Mônaco.
Esses pequenos erros custaram posições importantes durante disputas, pontos que poderiam fazer a diferença e também pódios. Situações impensáveis de acontecerem com o António durante o Gen2, estão acontecendo no Gen3 e ele não é o único.
O começo de uma nova geração sempre impacta cada indivíduo de uma forma diferente, então, é esperado que alguns deles sofram mais.
Não se trata da dificuldade em si, mas sim, como o piloto e a equipe estão lidando com ela. Quando António acerta, seus engenheiros erram e quando os engenheiros acertam, o António é quem erra. A sincronia ainda não atingiu o seu nível perfeito, existem falhas, porque já vimos nessa temporada o que acontece quando as estrelas se alinham para Da Costa e os seus engenheiros. O terceiro lugar em Hyderabad e a vitória na Cidade do Cabo estão aí como provas.
No caso de Pascal Wehrlein, a situação é um pouco diferente. Enquanto Da Costa é um piloto mais agressivo, Pascal é mais calculista e tem uma postura um pouco mais conservadora, embora, bata de frente com os outros pilotos quando está brigando pelas primeiras posições.
Diferente de seu companheiro de equipe, Wehrlein não teve tantos problemas para se adaptar ao Gen3, isso é um dos motivos pelos quais ele conquistou mais pódios e assumiu a liderança da competição por tanto tempo. Foi a combinação perfeita de homem e máquina por algumas etapas, mas com a evolução da Jaguar e a clara dificuldade que a Porsche tem em conseguir bons resultados na classificação, Pascal foi ficando para trás e constantemente precisa brigar para escalar o pelotão. Ao largar de trás, o caos é maior e as disputas de posição são mais intensas. É como se os pilotos nadassem contra uma forte correnteza, onde dão o máximo de braçadas possíveis, mas nem sempre saem do lugar.
Entretanto, tem algo que está passando despercebido por muitos, algo que vai além da estagnação das atualizações da Porsche, que vai além do fraco desempenho da dupla nas classificações e esse algo é o silêncio.
A ausência de comunicação
Sim, precisamos falar do time de engenheiros de Pascal Wehrlein, mais especificamente do engenheiro que mal se comunica com o piloto durante as provas.
Diferente do caso do António Félix da Costa, onde as partes parecem funcionar bem juntas e o que falta é só um refinamento de ambos os lados. Com Pascal Wehrlein, a sensação é que às vezes ele tem que lidar com as situações sozinho.
Diferente de outras categorias do automobilismo, a última coisa que um piloto de Fórmula E tem é paz em seu fone de ouvido. O carro da Fórmula E pode até não ter um som alto, mas no fone dos pilotos o que não faltam são bipes e alertas que soam continuamente ao longo da corrida, além do rádio com os engenheiros e esse é um ponto crucial.
Durante as voltas, os pilotos constantemente passam dados para os engenheiros sobre as condições do carro e o time trabalha em cima disso juntamente com algumas outras informações que possuem. Cada um se ocupa de uma coisa, mas o engenheiro que se comunica diretamente com o piloto tem um papel fundamental não só de coletar os dados passados, mas também de auxiliar o piloto ao longo da prova, dando informações sobre a energia restante do carro, a condição dos adversários, orientar na execução das estratégias previamente alinhadas com o time, discutir com o piloto sobre o melhor momento de acionar o Modo Ataque, atuar como psicólogo nos momentos de tensão, entre outros pontos.
A rodada dupla do E-Prix de Berlim e o E-Prix de Mônaco foram etapas que chamaram a atenção para esse caso do Wehrlein.
Durante a transmissão da corrida de Mônaco dá até para notar um momento em que Pascal pergunta sobre a energia do carro e não obtém nenhuma resposta por parte do engenheiro. Depois disso, Wehrlein passa as informações corriqueiras das condições do carro ao longo de algumas voltas, até que ele retoma a pergunta sobre a energia, o rádio fica mudo por muitos segundos e finalmente o engenheiro informa que não sabe dizer, porque está sem acesso a essa informação. Até aí tudo bem. Problemas acontecem, talvez, as informações não apareceram na hora e a comunicação estivesse com falhas, por isso, a demora no retorno.
Todavia, essa não foi a única situação de linha muda em Mônaco.
Acompanhando o rádio de Wehrlein, o piloto pergunta sobre as estratégias e fala utilizando os códigos pré-estabelecidos com a equipe, o seu engenheiro novamente não o responde de prontidão, Pascal refaz a pergunta e meio perdido o engenheiro pede que ele aguarde por algumas voltas. Ele acata o que o engenheiro diz e até que Pascal tome a iniciativa de questionar novamente o que fazer, nada é falado no rádio.
Se voltarmos para a etapa de Berlim, em diversos momentos ao ouvir o rádio do piloto durante a corrida, era notável que Wehrlein era quem tomava a iniciativa na maioria das vezes.
Talvez, esse seja o combinado entre ele e o seu engenheiro. Onde é o Wehrlein quem dá as sugestões e o engenheiro apenas diz “sim” ou “não”.
Porém, é estranho quando isso não é notado em nenhuma outra equipe, mesmo nos casos de pilotos que costumam ser mais cabeça dura como Sébastien Buemi e Lucas Di Grassi. É comum existir uma troca.
Além disso, é esperado que os rádios sejam bastante movimentados ao longo de uma corrida da Fórmula E, porque em cada volta tem pelo menos um contato do piloto para informar dados importantes para que os engenheiros possam ir trabalhando e nesses casos é comum não ter resposta. Porém, a quase todo instante o engenheiro mantém contato, porque eles são os olhos que observam tudo o que está acontecendo ao redor de seu piloto.
No caso de Pascal Wehrlein, pelo menos dentro do que foi observado em Berlim e em Mônaco, é quase um monólogo.
Para não cometer injustiças, não dá para saber se isso ocorreu em outras etapas e é bem provável que não. Mas levando em conta o que foi observado nas corridas usadas como base para essa argumentação, o engenheiro até se comunica, porém, em comparação com o resto do grid as suas interações são pouco relevantes e no máximo é solicitado que o Pascal siga com o plano ou faça a mesma coisa que o piloto à sua frente.
Reencontro
A Porsche precisa refazer os próprios passos. Precisa voltar a ter a mesma atitude que os fez trabalhar firme no desenvolvimento do Gen3, a mesma movimentação que os levaram ao topo e a mesma energia que proporcionou as vitórias, pódios e bons resultados.
Talvez, a falta de liderança do engenheiro de Wehrlein seja o reflexo de uma equipe que sentiu a pancada de ver a Jaguar crescer sem pedir licença, mas a Porsche tem que lembrar que ainda está na disputa, que a diferença de pontos é mínima e que do mesmo modo que eles trabalharam para se destacar, as outras equipes também farão o mesmo.
É voltar a focar no próprio jogo, confiar no trabalho executado e ir de acordo com as próprias estratégias, sem se pautar no que os outros estão fazendo. O que der certo fica como uma opção para as próximas corridas e o que der errado fica de aprendizado.
A última vez que a Porsche subiu em um pódio foi fevereiro, na etapa da Cidade do Cabo. Entretanto, em praticamente todas as corridas que vieram a seguir, os dois carros estiveram dentro do Top 10 e conseguiram se esquivar de boa parte das confusões.
O que eles precisam agora é que os pilotos melhorem o seu desempenho em volta lançada, que os erros sejam minimizados, que os engenheiros se lembrem que eles precisam ser a força de seus pilotos durante as provas e, portanto, precisam ser mais ativos.
A equipe alemã só vai ser campeã da Fórmula E, quando verdadeiramente entender que somente ela se basta.
O trem de força, os pilotos, os profissionais, os equipamentos estão todos lá.
Só falta a Porsche.
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